domingo, fevereiro 28

MEMÓRIAS


UM VELHO LOBO-DO-MAR
Quando leio um livro, que me tolhe a atenção, mergulho profundamente na sua prosa ou nos seus versos; faço-o quase sempre em voz alta para que, além da leitura silenciosa, possa completar e guardar o conteúdo lido, pela memória da audição. Assim, costumo fazer: ouvindo, faço uma pausa, em curtos momentos; intervalos forçados para poder respirar aliviado, pensar e, como tal absorver, digerir, “resgatar” a leitura. Foi num destes curtos intervalos, em franca digestão dessa leitura do livro de Tânia Estrella, que recordei alguns factos e pessoas que de repente, como por magia, me surgiram na memória, vindos bem lá do fundo de um arquivo guardado nas lembranças do passado. Arquivo que quis emergir, aparecer, por ter algo ainda incompleto. Inspiração condicional para esta comunicação escrita, por uma falta minha.
Ao mesmo tempo que era correspondente do jornal “O Século”, com o título de "Mar Adentro", escrevia eu uns artigos semanais para o jornal da minha terra denominado, A Gazeta do Sul. Em maré de inspiração, sem ser poeta, noutra rubrica, também escrevi e publiquei alguns poemas que sem prémio, nem concurso, - considerados polémicos, em momento pós-revolucionário – sem a minha autorização, foram copiados e publicados noutros periódicos, embora, ressalvo, com o nome do seu autor.
Os artigos da rubrica Mar Adentro eram apanhados de factos vividos, ocorridos nos mergulhos semanais, quase sistemáticos, que durante muito tempo efectuámos no Cabo Espichel, em Sesimbra e Berlenga, Estelas, Farilhões (Peniche) ou quando ministrávamos cursos de escafandria; na ilha do Martinhal - Sagres (Algarve) ou na Boca do Rio, no estaleiro do Ministério da Cultura, quando fazia arqueologia submarina para o Museu Nacional de Arqueologia; na Ilha de Porto Santo (Madeira), na reserva natural do Garajau (Funchal) ou nas Ilhas do Arquipélago dos Açores, S. Miguel, Ilhas Formigas e Corvo, também por mero divertimento, digamos assim, pelo “prazer de mergulhar”. Essas histórias do Mar Adentro que, excepcionalmente, durante várias semanas, naquele jornal, descreveram a minha viagem ao Continente Africano, via Egipto, numa excursão pelo Mar Vermelho, num barco denominado “My Ocean Lady” que versavam ocorrências acidentais: a divulgação da fauna e da flora submarinas, com filmes e fotografias (slides em diaporama) daquele exuberante mundo de coral, e queria - pretensão minha, talvez - a divulgação do meio submerso através de conferências e exposições, que ocorreram, algumas, no salão nobre da Câmara Municipal de Montijo. Alertava, contestando quase sempre, para a depredação galopante do sistema ecológico submarino, especialmente a “triste morte” do rio Tejo – recordando com saudade a sua biodiversidade no tempo da minha infância; o endemismo das espécies e os golfinhos visitantes (roazes corvineiros) que chegavam livremente até às zonas mais altas do rio e as tão afamadas ostras do estuário do Tejo - Montijo e Alcochete - vendidas em Paris e Londres até há cerca de duas vintenas de anos.
Depois do segundo conflito mundial (1939/1945) e antes do surto industrial, o mundo submarino e a natureza exterior ainda pulava exuberante de vida.
Contestações intentadas pelo nosso grupo de mergulhadores defensores do mar, num período em que os ecologistas eram ainda considerados, por alguns, pessoas estranhas, aqueles outros incómodos para a política vigente. Mais vezes, contava ocorrências entre pessoas que entreviam em terra e, ou entre mergulhadores, amigos de sempre, para sempre. Aquando do trabalho arqueológico, pretendia situar as ocorrências na história e, descrevendo-a, divulgava, assim, algo sobre a história oculta, submersa.
Mas não é sobre a minha pessoa e das minhas incursões submarinas, como na história dos navegantes, do Veneziano Marco Pólo do séc. XIII ou do Português Fernão Mendes Pinto, (este, aventureiro e escritor, 1510 – 1583,) - deles escreveram as suas viagens marítimas... agora, com ironia, invocando o trocadilho: ” Fernão, mentes? Minto! “, - que pretendo descrever a memória acidental, ora resgatada por via do livro de T. Estrella. Pretendo não apenas situar os factos, esclarecendo-os, enquadra-los numa sequência cronológica de ocorrências mas também contar uma história verídica sobre uma pessoa marcante, que um dia conheci e prometi a mim próprio escrever e divulgar. Uma personagem insigne, popular, que a amizade tomou de nós, recíproca, pura e para a qual em dever ainda estou em falta. Falta que descreverei assim como os versos da Nau Catrineta que dedico em memória dele e de todos os homens que sulcaram os mares.
Foi algum facto que me fez recordar e resgatar do tempo e da memória essa figura típica, indígena de uma região linda de Portugal, quanto demais conhecida pela história: SAGRES, região marítima por excelência, piscatória sem opção, vinculativa de um povo que durante séculos enfrentou o “mar oceano” do Atlântico.
A todos os navegantes do passado e gente do presente que sulca os oceanos na busca infinita de “outros mares”:
Lá vem a Nau Catrineta que tem muito que contar...”
A Nau Catrineta
Romance, ou versos, colectado por Almeida Garrett. Garrett acreditava que a viagem da nau portuguesa, que em 1565 transportava Jorge de Albuquerque Coelho, de Olinda para Lisboa, deu origem a estes versos:
“Lá vem a nau Catrineta
Que tem muito que contar!
Ouvide, agora, senhores,
Uma história de pasmar.
Passava mais de ano e dia
Que iam na volta do mar
Já não tinham que comer,
Já não tinham que manjar.
Deitaram sola de molho
Para o outro dia jantar;
Mas a sola era tão rija
Que a não puderam tragar.
Deitaram sorte à ventura
Qual se havia de matar;
Logo foi cair a sorte
No capitão general.
-- Sobe, sobe, marujinho,
Àquele mastro real,
Vê se vês terras de Espanha,
As praias de Portugal.
"Não vejo terras de Espanha,
Nem praias de Portugal;
Vejo sete espadas nuas
Que estão para te matar".
-- Acima, acima gajeiro,
Acima ao tope real!
Olha se enxergas Espanha,
Areias de Portugal
"Alvíssaras, capitão,
Meu capitão general!
Já vejo terra de Espanha,
Areias de Portugal.
Mais enxergo três meninas
Debaixo de um laranjal:
Uma sentada a coser,
Outra na roca a fiar,
A mais formosa de todas
Está no meio a chorar".
--Todas três são minhas filhas,
Oh! quem mas dera abraçar!
A mais formosa de todas
Contigo a hei-de casar.
"A vossa filha não quero,
Que vos custou a criar".
-- Dar-te-ei tanto dinheiro,
Que o não possas contar.
"Não quero o vosso dinheiro,
pois vos custou a ganhar!
-- Dou-te o meu cavalo branco,
Que nunca houve outro igual.
"Guardai o vosso cavalo,
Que vos custou a ensinar".
--Dar-te-ei a nau Catrineta
Para nela navegar.
"Não quero a nau Catrineta
Que a não sei governar".
-- Que queres tu, meu gajeiro,
Que alvíssaras te hei-de dar?
"Capitão, quero a tua alma
Para comigo a levar".
-- Renego de ti, demónio,
Que me estavas a atentar!
A minha alma é só de Deus,
O corpo dou eu ao mar.
Tomou-o um anjo nos braços,
Não o deixou afogar.
Deu um estouro o demónio,
Acalmaram vento e mar;
E à noite a nau Catrineta
Estava em terra a varar.”
A Nau Catrineta será a história cantada em verso da diáspora de um povo à beira mar plantado, Portugal, mas tão só de pessoas que entregaram as suas vidas ao mar, como a figura que a seguir vou descrever, que nasceu alguns séculos depois mas viveu no nosso tempo, do mar e para o mar.
O MAR, esse elemento soberano que é a fonte iniciática da biologia, neste frágil planeta “Terra” por nós ainda conhecido como único portador de vida inteligente. Do mar, não há rochedo que resista à sua investida temporal; não há barco nem ferro, nem muro, nem engenharia que fique em pé perante a sua fúria devastadora; ele é o principio regenerador, imutável na sua constituição molecular, qual soro fisiológico hipertónico para o mundo, como o sangue que nos alimenta o corpo. Nesta perspectiva avassaladora, fantástica, o mar criou mitos entre os povos, que se propagaram até ao nosso tempo. Encerra segredos... Tesouros incontáveis, como um cofre-forte jamais igualado pela engenharia imaginativa dos homens.
RETOMANDO DO RESGATE A MEMÓRIA...
Após 1972, depois de um interregno desde 30 de Outubro de 1963, voltei à actividade submarina e do mar, que sempre, desde que de mim tenho consciência, muito me fascinou.
Comprei um barco a diesel, costeiro, de 4x12m e 6,5T de arqueação bruta, que denominei de “Calypso” em memória, claro está, de Jacques Yves Cousteau. Parti do estaleiro naval de Sarilhos, do meu amigo Mestre Jaime, pelo Mar Adentro e nele naveguei da Roca até Sines. Foi o brinquedo mais importante que até então tinha tido e que, durante cinco anos, usufrui em pleno, desempenhando, por força das circunstâncias, as funções de marinheiro, mecânico, electricista, calafete, soldador, carpinteiro, pintor, pescador, mergulhador, etc. Mas isso é outra história que deu origem a muitas outras para contar, recordar e oportunamente escrever.
Nessas andanças de fins-de-semana que se prolongavam por mais tempo durante as férias de Verão, conheci um pescador, no Martinhal (Sagres) de quem não interessa o nome mas sim apenas a alcunha pela qual ele é ainda sobejamente recordado, conhecido, na faina do mar, em quase toda a província Algarvia. De sua alcunha: O TI BESUGO. Ti, abreviatura de tio, porque ele era o tio adoptivo de todos os homens que naquele local demandavam o mar; Tio porque é o tio que na falta do pai, vela e dá a ajuda, estende a mão para salvar. Besugo, porque é um peixe muito comercial e ele, por sorte ou destino, mesmo com mar avesso, ia à pesca. Enquanto os outros pescadores salvavam bens e haveres, resguardavam-se da fúria de Neptuno, ele saia ao mar no seu pequeno bote – quase todo construído e equipado por ele - de remos e vela latina, bem remendada dos abanos da força do vento e da faina. Pescava sempre, com mar calmo ou travesso. Além de apanhar outros peixes, pescava e vendia mais besugo que os outros todos. E assim ficou ele, senhor do mar, identificado por outras pescarias do mar alto e daquela região, por imposição popular, desconhecido na gente local por outro nome, apelidado de Ti Besugo.
Disse o poeta de Portugal: “... A necessidade aguça a arte e o engenho...”
Ele, Ti Besugo, melhor que ninguém, conhecia o mar e as suas voltas, correntes e ventos. Bastava-lhe olhar para o céu, ver as nuvens, sentir o vento na face, a humidade, sei lá, cheira-lo... como uma matilha cheira a sua presa à distância (era um verdadeiro lobo do mar) para depois nos informar do tempo que o mar nos ia emprestar e dos melhores locais para nele mergulhar. Ele sabia prever o vento Sueste, que vem do estreito de Gibraltar, “o levante”, como é ali conhecido e temido... o vento que levanta ondulação e forças fatais, incontroláveis. Ele previa esse mau tempo primeiro que os cientistas da meteorologia.
Só os navegantes experimentados sabem quanto difícil e perigoso é dobrar o Cabo de S. Vicente para Sagres, ou vice-versa. As correntes e os ventos que cruzam o Atlântico na passagem até à entrada para o Mar Mediterrânico são a demanda que tem levado muitos à última viagem.
Todos os pescadores consultavam o Ti Besugo. Quando o tempo era duvidoso, como um dever, quase um ritual de quem comunica com o mar, lá iam eles passando no início da manhã, cumprimentavam-no e indagavam: “Ti Besugo, bom dia. Como vai o tempo hoje?” “ Bom!”, Respondia ele olhando o céu. Era sempre assim, como os demais, onde eu colhia as melhores informações das condições daquele mar oceânico, tanta vez, inevitavelmente, fatal.
Num daqueles fim-de-semanas que fui até ao Martinhal e soube, na Taverna dos Pescadores, que os alunos e professores da Universidade de Meteorologia de Faro, com a televisão local, tinham estado em Sagres a colher conhecimentos e informações do Ti Besugo. Por excepção, vergava-se, assim, o saber científico ao saber popular empírico.
Já conheci o Ti Besugo quase fora do tempo da sua actividade marítima, aposentado, depois, pela força dos anos, de nariz bonacheirão, simpático, de face tostada pelo sol e com as mãos ainda encrespadas, calejadas de tanta faina de mar, labuta sem hora de ida nem volta, contra um mar tenebroso de que ele falava com enlevo, admiração, quase amor dum inimigo contra quem se luta com respeito, para salvar a vida e ter o pão do dia-a-dia que Deus nos dá. Para ele o mar era o adversário que se respeita. Ele era crente em Deus como todos os homens do mar e todos os domingos ia à missa. Disse-me que falava com Deus, assim... “tu cá tu lá”, ajoelhado ou sentado, perante a imagem e que se zangava com Ele quando algo acontecia e que ele, Ti Besugo, considerava que não devia acontecer.
Assim o conheci ainda navegante e depois sentado numa cadeira, em frente à sua casa, - passagem obrigatória de quem queria sair para o mar - ali ficava ele à espera de quem quisesse consultar os oráculos de Neptuno. Bastava para isso pagar-lhe um café, uma cerveja ou presentear a “vestal” inserida na pessoa do Ti Besugo, com algo mais... “Algum dinheirinho” para compensar o informante e se salvaguardar a tranquilidade do eventual navegante. Valia sempre a pena comprar um “oráculo” da segurança oferecida pelo Ti Besugo.
Como era bonito este ritual da gente que demandava o local e quase em sacro dever pedia bom tempo ao homem “druida” que sabia do mar. Fascinou-me este saber tão contido que eu, como homem do mar, que já me considerava, tanto queria apreender.
Mas fui mais além da simples informação. Fui seu amigo. Ouvi as suas histórias marítimas, desde a primeira guerra, quando ele era ainda um miúdo, ajudante de pescador, dizia, “para ganhar a bucha”. Ouvi as suas histórias familiares; ouvi os seus queixumes. Sei que ele ficava contente quando eu telefonava ´”lá de Lisboa” a avisar que ia até Sagres, mergulhar. Para ele tudo o que era de fora do Algarve, para aquelas bandas, para Norte, era de Lisboa. Uma Lisboa que ele nunca viu. Andou na pesca do “mar alto”, por tanto mar nunca dantes navegado mas nunca tinha ido a Lisboa. Tanta gente que vive em Lisboa mas que nunca andou na pesca do mar alto... Contaram-me que ele dizia na taberna de todos os pescadores, “o Zé vem aí amanhã”, com alguma alegria no olhar. Ele sabia que alguém o ia escutar atentamente nas histórias da sua juventude e brindar com uma ou outra refeição, petisco extra, eventualmente regada com bom vinho algarvio, que ele tanto gostava e bebia às escondidas da filha que o vigiava atentamente, por ordem do “doutor”... Nas recordações de um velho lobo-do-mar, ficávamos eu e alguns outros a ouvir, a divagar pela prosa das suas histórias e, entre copos, à espera da previsão meteorológica do Ti Besugo.
Uma vez, estávamos nós em franca conversa com um biólogo marinho, sobre ecologia, atalhou ele que, “naquele tempo” o peixe era tanto que os mais necessitados não precisavam de se esforçar muito para matar a fome; que as lagostas, quando a maré vazava, ficavam a balançar ao sabor das ondas, junto ao porto de mar.
Num dia, de sol, ele disse-me: “Vou-te revelar onde está afundado um navio inglês, mandado ao fundo por dois torpedos dum submarino Alemão, mas não fales disso para aí, a muita gente”. De facto, muita gente do mergulho andava a querer saber isso dele. Nunca lhe pedi essa informação, mas ele sabia que eu gostaria de saber. Era um segredo silencioso que ambos sabíamos respeitar. Deu-me as coordenadas de Norte e Leste, tiradas de terra (religiosamente ainda guardadas) e assim fui com os meus companheiros de mar adentro. Encontrei o navio a 40m de profundidade, no meio daquele deserto lodoso e ainda carregado com carvão mineral e com a proa desfeita pelos torpedos. Trouxe-lhe uma garrafa de cerveja ainda intacta e um cinzeiro de vidro, gravado com o nome do navio “The Vapor of Sea”, vapor, das dezanove braças, como ele era por ali indicado. Disse-me que o oficial, comandante do submarino alemão, deixou a tripulação do navio sair, embarcados em dois salva-vidas, para terra e que, só depois o afundou; que os tripulantes do submarino estiveram, mais tarde, em terra para se abastecerem.
Ainda por causa das guerras, lamentou-se de que, quando casou, com as suas parcas poupanças e muito sacrifício sofrido, comprou uma vaca para ter leite em casa mas que um dia, durante a segunda guerra, um avião alemão, “entrou por ali dentro” e abateu-a.
Essas histórias eram contadas, por ele, na sua voz rouca, com colorido quase sonoro e com conhecimento de causa.
Tantas outras histórias que lhe ouvi e que ainda recordo. Dizia ele: “no meu tempo não havia sapatos. Só pró ricos. Eu andava com as solas que Deus me deu”. À laia de chacota, disse que uma vez, quando era jovem, estava na falésia, a ver o mar e escorregou. Caiu ao mar mas, nadando conseguiu chegar a terra. Fui ver a falésia, onde dizem que alguns lá morreram por terem caído ao mar, de tão alto. A altura é assustadora mas a história do Ti Besugo é verdadeira porque alguém assistiu à sua queda e foi a correr avisar gente e pedir socorro. Quando tentavam sair de barco para o procurar e, eventualmente socorrer se estivesse vivo ou, em contrário, mais provável, encontrarem o corpo, de cuja queda, toda a gente julgava ser impossível sobreviver, ele, Ti Besugo, fez história: chegava a terra, cansado, a tremer de frio, sem lesões, mas encharcado pelo mar que tanto amava. Falava disso em tom jocoso e finalizando, dizia rindo que jamais morreria no mar porque o mar não o queria lá “morrido”.
Um dia, após um interregno da minha actividade marítima, de visita a Sagres, soube que o Ti Besugo havia falecido de doença do coração. O mar não o chegou a resgatar, talvez porque, como ele dizia, não o queria lá “morrido”.
Tem piada... ou ironia, talvez. Ele sempre disse que não morreria no mar. Onde seria mais provável que tivesse morrido? No mar que enfrentava dia e noite, ou em terra, onde se acoitava, apenas para varar, se abastecer e recompor das fadigas? O mar não brinca. Sem pena nem agravo, ele surge repentinamente furioso e não se justifica. Quantas vezes eu pensei ser o último dia. Não aconteceu mas podia ter acontecido. Será que eu aprendi alguma coisa que me ficava do Ti Besugo, ou a prudência, por princípio, contribui para o cuidado da vida?!. Fica aqui a interrogativa, mas também a afirmação de que tanto os ensinamentos do Ti Besugo, como a prudência foram úteis.
Sem duvida que, e não só no mar, o conhecimento alimenta a prudência.
Mesmo antes da sua morte, eu já havia prometido a mim mesmo que escreveria as suas histórias e algo da sua vida peculiar, na rubrica de “Mar Adentro”. O tempo passou e foi padrasto, a história ficou por escrever e por contar. Agora, com o resgate de T. Estrella, em estada no Brasil, chegou-me misteriosamente à memória essa história que ficou suspensa, por escrever e publicar. Ficou agora, algo, escrita e se possível será publicada noutra rubrica que não do Mar Adentro. Quem sabe?!... Talvez se inicie agora outra rubrica com o título de “Memórias” ou, seja isto, o princípio de um livro no prelo.
Esta é uma parte da história do Ti Besugo da qual eu e outros fazemos parte integrante, porque todos fazemos história das nossas vidas entrelaçadas.
O Ti Besugo não sabia soletrar duas letras para além de, eventualmente, poder identificar o A, E, I, O, U; Sabia fazer contas rudimentares por via da venda do produto do seu trabalho. No entanto, era um homem notável, rico na sua personalidade justa, popular. No seu mister, desempenhado desde garoto, por força da sobrevivência, era exímio pescador. Sabia ler o mar, traduzir e interpretar as suas manifestações através dos outros elementos naturais. Embora empiricamente, possuía o dom do saber pela vida feito. Era alegre, brincalhão, educado. Tirava o seu sustento do rude mar e, valentemente, com humor, arriscava a vida, sempre confiante no seu saber.
Tenho saudades do Ti Besugo e do meu tempo de mar, dos seus ensinamentos meteorológicos, de observação do mar que no tempo com ele fui aprendendo.
Agora só me resta recordá-lo e fazer uma vénia à sua personalidade popular de homem bom e íntegro. Um verdadeiro Lobo-do-mar que eu tive o privilégio de conhecer.
Plagiando Camões em rudimentares fragmentos de seus versos e em homenagem ao TI BESUGO, direi:
... “Se lá, no assento etéreo onde subiste, memória desta vida se consente, não te esqueças”...de…
... “Aqueles que do mar, da vida e da morte se libertaram “...
AMIGO... REPOUSE A TUA ALMA, NA PAZ DE DEUS, ETERNAMENTE...
18 de Dezembro de 2002
José Douradinha