domingo, maio 30

MAR ADENTRO E O MUNDO SUBMERSO



Este artigo foi escrito e publicado no Jornal GAZETA DO SUL em 25 de Julho de 1987:


«DA RESERVA DO GARAJAU ÀS DESERTAS


As reservas, em terra ou no mar são o último reduto que o homem concede à natureza…
Por Decreto Legislativo Regional, nº 23/86M de 4 de Outubro foi criada no Mar da Ilha da Madeira a Reserva do GARAJAU, iniciada a Leste do Porto do Funchal, a cerca de 1200mt, limitada a Oeste pela ponta do Lazareto, paralela à linha da costa numa extensão de 5.629mt e, na perpendicular até à batimétrica dos 50mt ou a uma distancia nunca inferior a 600mt, do limite da costa.


Durante dois meses criámos as condições necessárias para a nossa viagem à Madeira. Estabelecemos os contactos e por fim afinámos as máquinas subaquáticas de filmar e fotografar. Destinámos as Ilhas Desertas que se situam a Sudoeste da Ilha da Madeira e distanciadas desta a cerca de 14 milhas marítimas. Com bom tempo avistam-se do Funchal.
No mar, as distancias, por ilusão de óptica, parecem encurtar-se.
No horizonte visualizam-se distintas as três ilhas que compõem as Desertas. De Norte para Sul, a pedra do Furilhão e junto desta o Ilhéu do Chão, Deserta Grande e Bugio. Na carta marítima ou no mapa parecem emergir do oceano como último reduto do que terá sido no tempo o prolongamento ininterrupto da parte mais meridional da Ilha da Madeira.
Ainda no Continente ouvíamos com atenção as previsões meteorológicas que em desabono pareciam limitar-nos os planos concebidos. O nosso grupo deveria compor-se por dois elementos do Aquário Vasco da Gama, dois elementos do Centro Português de Actividades Subaquáticas e por outro do núcleo de Estudos Subaquáticos de Peniche. À última hora os dois elementos do Aquário, por motivos imprevistos de força maior, desistiram da viagem.
Para além da imprevisão meteorológica, parecia surgir assim a segunda grande contrariedade.
Mas, finalmente, A PARTIDA! Iniciámos assim e viagem que nos iria facultar as mais belas e deslumbrantes imagens subaquáticas.
Em pleno voo, já noite, tivemos o primeiro contacto visual com a Ilha da Madeira. A iluminação multicolor surgia imensa. A pista de aterragem distinguia-se por um trajecto luminoso contínuo e inconfundível. Sentimos o tocar no chão e, no mínimo de espaço e tempo estávamos em segurança. Aterragens que são assim apanágio habitual dos pilotos da TAP.
Ainda não estávamos de posse da bagagem e já os nossos anfitriões, no aeroporto, para além da vitrina divisória, nos faziam sinais de boas vindas. Os primeiros contactos foram bem elucidativos dos momentos de confraternização que iríamos viver.
Todos os dias da nossa estadia estavam já preenchidos com os programas de mergulho e filmagens que havíamos planeado.
Percorremos a distância que nos separava da cidade e a cerca de uma vintena e meia de quilómetros, recolhemos depois às instalações que nos haviam sido facultadas pela Secção Desportiva da Marconi, situadas a pouca distância da Marina, onde deveríamos embarcar com destino às Ilhas Desertas.
No dia seguinte, logo pela manhã, preparámos o material de mergulho e verificámos as máquinas subaquáticas de filmar e fotografar.
Fomos mergulhar ao Caniçal, por terra, pois o Mar, na sua imperativa vontade, não nos permitia uma saída mais distante. Caídos no Mar, e logo ao primeiro contacto nos deslumbrava a transparência cristalina da água. Evolucionando lentamente dávamos conta da profundidade progressiva e, o fundo, extraordinariamente acidentado oferecia-nos grutas, gargantas e túneis de imensa beleza e formas, mas, de rocha quase nua, infelizmente povoadas pelo ouriço-do-mar “diadema antillarum” de espinhos enormes e pontiagudos, predador de algas. Os cavacos “scyllarides latus” espécie do grupo das lagostas e afins e as santolas “maja aquinato” apareciam regularmente sobre as rochas, disfarçadas, ou nas grutas em maior numero. As aranhas do mar são espécies invulgares no Continente mas que se vêem com frequência naqueles fundos. Especialmente no Caniçal surge por vezes à profundidade dos 20 metros uma espécie de anémona de cor branca, matizada de amarelos ou lilases, endémica das águas frias, que pela sua origem tem dado que pensar a alguns biólogos marinhos.
Desde o alvor da manhã até ao fim do dia estávamos sempre em actividade. Começando pela preparação do material, transporte, etc., mal nos sobrava tempo para comentários do mergulho realizado e para projectar o dia seguinte. Realce aqui o facto de que mergulhar em águas tão claras, temperadas e profundas, acarretar uma consequente sobrecarga física e psicológica, na medida em que quase sempre se excede o tempo de mergulho permitido nas curvas de segurança.
Quase nos esquecemos de que o ar contido nas garrafas tem fim e que necessitamos de vir à superfície!
Finalmente o segundo mergulho. A grande oportunidade! A saída para as Ilhas Desertas…
Logo ao nascer do dia embarcámos na lancha cedida pela Direcção Regional de Turismo, com rumo às ILHAS DESERTAS.
A embarcação de 14 metros e com uma deslocação de arqueação bruta de 14 toneladas, testada, no mar da Madeira em muitas viagens como aquela, tinha sido o transporte ainda há pouco tempo do Sr. Presidente da República aquando da sua visita ao Arquipélago.
A viagem demorou cerca de três horas. Pelo meio do caminho, quando se navegava pela zona onde as correntes se encontram, sentimos o furor natural dos elementos, mas o timoneiro e o mestre, experientes navegadores transmitiam-nos involuntariamente a sua confiança. Ouvíamos à guisa de conversa os comentários que eles faziam da faina do atum, ou da baleia agora proibida, e do medo que nessas alturas os pescadores têm das Orcas, ali chamadas de “bocas de panela”, que em consecutivas arremetidas chegam a tentar forçar os cascos das embarcações. Movia-nos a intenção de fotografar os lobos-marinhos, espécie de foca abundante naquela zona (deu origem à cidade Câmara de Lobos) mas agora em vias de completa extinção, por causas sobejamente conhecidas, só atribuídas à acção do homem. Ao mesmo tempo, receávamos os “encontros imediatos” com outras espécies vorazes, inconvenientes, excluídas nos planos da nossa viagem que, sem terem sido convidadas, seriam eventualmente alvo da mira das nossas máquinas de filmar!?...
O acesso às Ilhas Desertas é difícil. As falésias íngremes limitam em pequenos espaços de pedra rolada os caminhos raros. Povoam-nas as aves e as cabras selvagens para ali levadas por antigos navegadores que pretendiam carne em tempo de passagem. Apenas no Ilhéu Chão vive o faroleiro.
Procurámos o sítio mais abrigado do vento, das ondas e das correntes que ali são violentas quando alguém se encontra nelas. Escolhemos a Baía da Ponta do Pedregal. O fundo via-se do barco e parecia estar ali ao toque da mão, a meia dúzia de metros; na realidade estava a quase trinta. A transparência da água era surpreendente…!
Maior surpresa foi a desertificação do fundo, a ausência de espécies que obviamente seriam ali abundantes, imprimia ao local uma visão quase irreal. A praga contínua dos ouriços-do-mar estendia-se como sinal irredutível da anormalidade. Desiludia-nos o facto!...
Tentámos conhecer as causas de tal calamidade e não nos foi difícil saber que ali furtivamente os pescadores usam explosivos.
Notámos a ausência de fiscalização das autoridades marítimas em toda a costa.
Vistas as Desertas, no fundo, e percorridos de barco em redor, procurámos os lobos marinhos, não fosse acidentalmente encontrado algum que se furtasse à mira das nossas máquinas.
Voltámos ao Funchal parcialmente desiludidos com a falta de fauna e flora que certamente, há algum tempo, teria sido ali exuberante. Restava-nos a esperança transmitida pelos nossos companheiros mergulhadores da Madeira, quanto à RESERVA DO GARAJAU, com a qual ocuparíamos os nossos três dias que nos restavam.
Vivíamos a expectativa dos últimos mergulhos e contávamos o pouco tempo que nos faltava para finalizar o nosso trabalho de cinema e fotografia. O tempo continuava de favor na costa Sul, em especial na reserva. Embora a Norte o vento fosse forte e o Mar estivesse “rijo”, dávamos graças por podermos continuar a mergulhar. As previsões meteorológicas ofereciam-nos a esperança.
Cheias as garrafas no compressor do Clube Naval do Funchal; voltámos de novo ao Mar. A manhã do dia seguinte estava calma; o Sol raiava no horizonte a Nascente e emprestava à paisagem o matiz contrastante dos verdes pendentes da falésia rochosa. A viagem durava de barco pouco mais que um quarto de hora. O Mar azul, transparente e calmo oferecia-nos de Neptuno, o Mundo Submerso. Descemos pelo cabo da ancora e mal tocámos o fundo a uma vintena de metros, perdemos a noção das nossas obrigações colectivas. Os ajudantes de iluminação esqueceram-se de acender os projectores e aprontá-los para o homem da filmagem que bem protestava com gestos largos e angustiantes. Os grandes peixes rodeavam-nos como por magia, os Meros, Os Pargos, as Moreias, os Sargos e outros limitavam-nos a visão e corriam à nossa mão procurando as sardinhas que generosamente lhes oferecíamos a comer. A meia dúzia de metros, para o largo, acabava a rocha e o fundo iniciava-se para o abismo. As enguias de jardim, semienterradas no lodo, pareciam um tapete de finos cordões cobrindo o fundo, no longo azul infinito…
Programámos os mergulhos dos dois últimos dias e conversávamos sobre a possibilidade de mergulhar duas vezes por dia. A dificuldade de enchimento das garrafas e as descompressões limitou-nos a acção.
O tempo ajudou e os filmes foram realizados como planeámos.
Restava-nos um só dia para arrumar a bagagem e visitar a Ilha da Madeira. Optámos por nos reunis em alegre convívio e cavaqueira e, à roda de uma mesa, com os nossos amigos, brindámos aos que construíram a RESERVA DO GARAJAU.
Fugia-nos o pensamento e as palavras para a distinta comparação entre as Ilhas Desertas e a Reserva do Garajau. À cena da conversa surgia o nome do Eng. Jorge de Castro que nesse momento representava Portugal no Campeonato Mundial de Fotografia Subaquática.
O nosso amigo presente Eng. Alberto Lima, natural de Alpiarça mas a trabalhar há cerca de seis meses na Madeira dava-nos os pormenores da situação: A Reserva do Garajau havia começado a ser repovoada há cerca de cinco anos, embora o Governo Regional só a tivesse estabelecido legalmente a 4 de Outubro de 1976. Foi em consequência do trabalho e persistência de alguns que o G.R. reconheceu a necessidade urgente de criar o espaço legal da reserva. Antes do seu repovoamento a zona encontrava-se deserta em consequência das capturas indiscriminadas e ilegais.
Por isso, nunca tantos deveram a tão poucos!...
Homens como os Engs. Jorge de Castro e Alberto Lima, que persistiram, sem qualquer interesse, na manutenção da reserva, apenas por dedicação ao ideal de protecção do ecossistema submarino, são, sem dúvida, o vivo exemplo da dedicação gratuita à preservação da NATUREZA.
O nosso filme começava a estar completo! Havia que estabelecer e demonstrar às pessoas que os humanos podem voluntária e facilmente destruir um ecossistema ou, ao contrário, se quiserem, construi-lo e preservá-lo, mantendo-o.
Quanto não beneficiaria a humanidade e a Natureza se às Ilhas Desertas voltasse a vida que um dia ali já existiu?!... Os lobos-marinhos (tornados casacos de pele) extintos por cupidez faziam parte de um ecossistema. Equilibravam a existência de outras espécies. Hoje reinam os ouriços-do-mar, naquele fundo desequilibrado.
À humanidade cabe a tarefa indubitável de controlar a vida na terra e preservá-la. A sua sistemática destruição compromete inexoravelmente a vida do próprio ser humano.
Madeira, 17 a 23 de Junho de 1987.»


Voltei a mergulhar na Reserva do Garajau e mais em Porto Santo onde ia todos os anos e, progressivamente, com a criação de reservas submarinas, fiscalização e limitação de cotas de captura é suposto que o Mar recupere ainda o seu esplendor.
José Douradinha

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