quarta-feira, junho 9

HISTÓRIAS DEBAIXO D’AGUA


BETWEEN THE LIMIT

Havia quem dissesse por gracejo que os mergulhadores depois de equipados pareciam uma árvore de Natal. É mais ou menos isso. Todos aqueles equipamentos de apoio que nos dão as informações e a sustentação num mundo para o qual a natureza não nos preparou e que são extremamente incómodos no exterior, dão-nos um aspecto de “alien” porque é isso que somos, estrangeiros numa outra “dimensão”.
A garrafa é o objecto de manutenção da vida em submersão, mas se encerrada, o colete pode ser usado, mais como recurso de flutuabilidade e equilíbrio; os manómetros e os tubos de ligação, são um espaço sob pressão que contêm ar para uma ou duas inspirações a poucos metros da superfície. Foi este pormenor que deu lugar a uma situação que não fosse outra coisa senão a experiência, o sangue frio e mais a força da mente e teria sido uma fatalidade.
Fomos numa barca, como sempre, aos fins de semana, para o Cabo Espichel, junto às Mesas do Arcanzil. Bom tempo, água limpa, transparente com uma visibilidade de 20 metros, coisa rara mas, lembro-me que via da superfície os outros mergulhadores junto ao fundo.
Feita a lista com os nomes e estabelecidos os grupos e toda a gente equipada, lá vamos até ao fundo ver as coisas que o Mar esconde aos comuns dos mortais.
Fiquei com o meu companheiro para os últimos, por ser eu o responsável da organização. É assim que mandam as regras, os últimos a sair para depois sermos os últimos a entrar.
Tinha eu por hábito atirar a garrafa para o mar com o colete insuflado e aí equipar-me.
Assim foi… Só que o manómetro de pressão da garrafa ficou entalado entre o colete, por baixo do braço, para trás.
As válvulas daquelas garrafas da Scubapro eram de "orelhas" uma alavanca de 1/4 de volta, coisa nova naquele tempo. Com a boca tapada pelo regulador e já preparado para imergir verifique que o manómetro não estava no sítio certo e fiz sinal ao meu companheiro para verificar e soltar o manómetro. Pensou ele outra coisa, que eu me tinha esquecido de abrir a garrafa e que lhe estava a pedir para a abrir… Fechou-a!
Porque o manómetro continuava preso, resolvi tirar de novo a garrafa soltar o dito cujo e colocar de novo o escafandro. O meu companheiro já estava a caminho do fundo, e assim continuei sem que desse conta que a garrafa estava fachada.
Vazei o colete para imergir, comecei a descer inspirei o ar contido nos tubos e à segunda inspiração, nicles, a cerca de seis metros não havia ar nem para um “caracol”. Estava a cair que nem uma pedra... Não dava tempo de chegar ao fundo em apneia negativa e pedir ajuda.
Avistei a quatro ou cinco metros a corda da âncora, comecei a dar à barbatana para lá chegar e não me afundar mais, agarrei-me a ela e de braçada em braçada até à superfície. Braçadas largas e enérgicas! Força…! Força..! Dizia a minha mente.
Quando cheguei à superfície, ao mundo do ar respirável, no limite da apneia negativa, pareceu-me que o mundo tinha surgido de novo, "a vida" mas gritei um palavrão tal que o mestre da barca veio à borda da proa e perguntou:
- Que é que foi?! Foi aquele “gajo” que me fechou a garrafa, disse-lhe eu, “porra” ia morrendo sem ar...
Retirei o equipamento, abri a válvula equipei-me de novo e quando me preparava para imergir surgiu o meu companheiro que disse:
- Então pá estou há que tempos, lá em baixo à tua espera.
- Pudera fechaste-me a garrafa, disse-lhe.
- Então vira-te que eu abro-a, retorquiu ele.
- Nem te atrevas! Respondi ao mesmo tempo que virava o polegar para baixo em sinal de imersão.
Lá fomos então os dois ver os fundos de Neptuno quando os outros já estavam a regressar à superfície.                    




Não vou referir datas para não ser fastidioso, apenas acontecimentos que ficaram na memória flutuante pela sua invulgaridade.

Quanto às fotografias submarinas, ainda estão todas em slides; tenho duas opções: compro um aparelho de transferência para o digital que surgiu agora no mercado ou projecto-as e fotografo-as para as transferir. Prometo que uma destas opções hei-de fazer. 
Post-Scriptum: Já comprei o aparelho de transferência de Slides e já estão a ser colocados em "AS MINHAS FOTOGRAFIAS", faseadamente.   

Recordações boas e outras nem tanto:

O RELAMPEJAR:
Num dos nossos mergulhos no Cabo Espichel, nocturno, trovejava, fazia relâmpagos e chovia torrencialmente mas, o mar e o vento estavam calmos. O mar tem tempestades próprias, mesmo que no exterior esteja mau tempo, o mar pode estar calmo. O vento quando é forte de "fora" tem mais influência na ondulação costeira. Com as lanternas acesas, cuja luz morria à luz dos relâmpagos o fundo ficava iluminado, a chuva penetrava na superfície como balas até dois palmos ou mais. O espectáculo era único... A gente avistava-se à luz da trovoada. Foi único e derradeiro, este mergulho… pois nunca mais vi um espectáculo semelhante.

O RIVER GURARA:
O navio "River Gurara" era um cargueiro porta contentores com pavilhão Nigeriano, com cerca de 175 m de comprimento que se afundou na noite do dia 26 de Fevereiro de 1989, cuja proa  embateu violentamente contra os rochedos virados a Sul do Cabo Espichel. O vento era de Sueste muito forte e o mar tempestuoso. O navio avariou os motores ao largo, ficou à deriva e antes de embater nos rochedos o comandante deve ter mandado arriar a âncora que lavrou o fundo, arrancou rochas, até quebrar um dos elos que se via, no fundo, esticado como um elástico. 
Passadas poucas semanas começámos a mergulhar regularmente nos destroços do navio que ainda libertava nafta e danificava, por isso, fatos e reguladores e mais equipamento.
Durante o seu afundamento que foi transmitido em directo pela TV., com um helicóptero de Força Aérea a tentar salvar a tripulação viu-se, em directo, um tripulante a ser "engolido" pelas ondas.
O salvador do Helicóptero, da Base Aérea nº6 de Montijo, meu conhecido, partiu uma perna, atingido por uma tábua flutuante, empurrada pela força do mar. 
No fundo, o navio ficou virado ao contrário e, ao sabor das ondas, ouvia-se o seu ranger agonizante, como um gemido ainda angustiante. Na sua parte mais funda, junto à popa o veio da hélice, com cerca de um metro e meio de diâmetro, estava partido como um palito e todo o resto do navio, numa visão incrédula, aterradora, pela configuração destruída do aço que nem papel amarrotado, parecia inimaginável. 
Os mergulhos semanais, Sábados e Domingos eram sempre dirigidos ao River Gurara, que estranhamente nunca foi reclamado pelo armador ou seguradora, nem impedidos os nossoa mergulhos pelas autoridades marítimas. Transportava madeira e outras coisas que sobressaiam dos destroços e de algumas madeiras quebradas, ocas, com pó branco e tubos de ferro do navio enrolados com plásticos cobertos de serapilheira, que eu e outros rasgávamos com as facas cujo pó se diluía na água em aspecto leitoso. 
Houve tempo que o fundo parecia uma oficina metalomecânica, pelo martelar das ferramentas que cada um transportava para retirar destroços “souvenires”. Ainda conservo uma vigia de casco, intacta, feita mesa de xadrez.

A GRUTA:
Num dos nossos mergulhos nocturnos no Espichel, com a água ligeiramente turva entrei por uma gruta sem dar conta da entrada e só constatei o facto quando ao tentar emergir tinha rocha por cima da cabeça. O meu companheiro tinha antes desaparecido por entre algas e laminárias.
A poeira fina da gruta limitou a visibilidade a zero. Consegui mentalmente tomar o percurso contrário (o coração batia desenfreado...) o ar engarrafado já marcava a reserva mas quando de novo avistei algas (fotossíntese - luz Solar) dei então conta que tinha de facto encontrado o caminho de volta até à superfície.
Uf..! que susto... Na superfície fui então recolhido pela barca e o meu companheiro perguntava interrogativo: “onde é que te meteste, que nunca mais te vi?!”. Nem queiras saber “meu” foi o dia da minha sorte grande! 

ENCONTROS IMEDIATOS:
O congro no Cabo Raso.
Um belo Domingo foi a malta mergulhar para o Gabo Raso a sair de Cascais.
Chegados ao local, todos equipados, ancora no fundo e aí vamos mar adentro… Passada uma meia hora, no fundo vejo um companheiro a sair duma gruta, a dar à barbata, à pressa, (passou por mim que nem torpedo, sem me ver) deixou cair no fundo a lanterna acesa e desapareceu da visibilidade que era curta, de poucos metros; peguei na lanterna e nadei até à entrada da gruta de configuração triangular com cerca de três metros de altura e uma base com pouco menos que isso. Iluminei o interior da gruta com as duas lanternas que transportava e, por momentos fiquei atónito, a cerca de um metro a olhar para mim um congro cuja cabeça parecia ter dois palmos de largura, da sua boca, fechada, saia uma linha de pesca com cerca de quatro a cinco palmos. Ali estava o “Rei do sítio” senhor absoluto, predador de caça nocturna.
Silenciosamente recuei até deixar de ver a gruta mas sempre a pensar que aquele “bichinho” podia sair da sua toca para, por curiosidade, apalpar o visitante.
Quando regressei à embarcação e já na arrumação do material “alguém” me perguntou: - Dizem ali que achaste uma lanterna. Achei é esta? É minha, disse ele. – Passaste por mim e nem me viste, disse-lhe eu, peguei na tua lanterna e fui espreitar a gruta… Ah... Foste? E viste aquilo?!... Vi, disse eu, e saí devagarinho de marcha à ré. Se contares isso aí a alguém ninguém acredita, podes crer. Só visto!

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