quinta-feira, junho 3

RUMOS CRUZADOS EM MANHÃ SUBMERSA


ESTE ARTIGO FOI PUBLICADO NO JORNAL “GAZETA DO SUL” A 1 DE FEVEREIRO DE 1989.  

“HISTÓRIAS DEBAIXO D’ÁGUA

A prática do mergulho com escafandro obriga a uma aprendizagem teórica e técnica antecipada. Por vezes, mesmo que todos os cuidados sejam observados, o mergulhador pode como qualquer outro praticante de actividade diversa, radical, deparar-se com situações previsíveis, mas eventualmente inevitáveis…
Há já alguns anos que, quando o mar deixa, todos os Domingos saímos em grupo de Sesimbra, numa barca alugada, para fazermos uns mergulhos onde melhor o mar permitir.

Se a memória não me falha foi em Setembro de 1985, numa manhã com bom tempo e mar de favor que ocorreu uma situação “acidentalmente desagradável”. Nesse dia escolhemos o fundo ao largo do Cabo Espichel, ali para os lados da baixa do cabo, mas um pouco mais para dentro.
Organizados os grupos, os mergulhadores começaram a saltar para a água. Calhou-me por companheiro o Jorge (mergulhador profissional), mais conhecido no meio por Jó-Jó. O mar calmo, o vento fraco de Leste e a visibilidade na ordem dos 15 a 20 metros, convidavam a um mergulho em pleno, ou seja, uma manhã submersa bem aproveitada. Assim foi ao princípio, nada fazendo antever o contrário. Durante 30 minutos estivemos os dois com bom aproveitamento e a contento, no reino de Neptuno. Vistos os buracos, satisfeitas as curiosidades e feitas as fotografias às lagostas que naquele dia eram em profusão, por via da limitação do “ar engarrafado” sinalizámos com o polegar o início da subida lenta, como mandam as regras, até aos três metros e, depois até ao “nosso mundo atmosférico”.
Já com as cabeças fora de água e a respirar o ar que a natureza nos oferece, avistámos a nossa barca na direcção de Leste, junto ao Espichel a recolher outros que também tinham finalizado a sua curta visita ao “mundo do silêncio”. Tínhamo-nos deslocado para Oeste, por isso estávamos longe do local do início. Olhámos à nossa volta e, de Oeste avistámos no nosso horizonte visual a silhueta de um navio, bem definido no azul luminoso do céu. Até aí tudo bem porque para aqueles navios de grande porte não era na nossa direcção a rota de passagem. Assinalámos a presença aos nossos companheiros da barca e, após termos recebido a confirmação de que fôramos avistados pela nossa gente, aguardámos flutuando ao sabor do lento baloiçar das ondas. Enquanto desfrutávamos a bonança, comentávamos gracejando o agradável mergulho com as vistas obtidas das boas lagostas daquele fundo rochoso muito irregular.
Inadvertidamente olhei de novo o horizonte para Oeste e ao descortinar, já perto a ameaçadora e imponente proa do navio que avistáramos no horizonte, chamei a atenção do meu companheiro para aquela presença desagradável que trazia rumo certo às nossas insignificantes cabeças. Nadámos para Norte, na perpendicular à direcção do navio, julgando ser possível sair da linha de colisão, mas a nossa lenta e pesada deslocação e a corrente contrária de vazante, não nos permitia à força de barbatana, fugir a tempo do destino cruel que parecia inevitável. Gesticulámos de braços no ar, apitámos e gritámos até ficarmos ofegantes, tentando chamar a atenção do timoneiro daquele “mastodonte de ferro” que, sem apelo nem agravo, nos queria passar a ferro. O tempo já era demasiado curto para a fuga e não nos deixou outra possibilidade senão a de, imediatamente mergulhar de novo. Em acção rápida e ambos de acordo, imergimos frente a frente e à distância de um braço, não fosse, por qualquer motivo, necessário o auxílio mútuo por falta do ar “engarrafado”. Quando atingimos a profundidade de quinze ou vinte metros, vimos a proa do navio que passou por cima das nossas cabeças, a sombra comprida daquele enorme monstro de ferro. Sentimos nos tímpanos a agressão da onda de choque que os potentes motores transmitem pelo mar aos nossos corpos frágeis e insignificantes que foram sugados e empurrados pela grande massa de água em deslocação de vante para a popa. Vimos a gigantesca e ameaçadora hélice a pouca distância cortar a água para imprimir a força necessária à deslocação daquele enorme “monstro” flutuante.
De novo à superfície, avistámos a popa do “monstro” e logo a seguir a nossa barca com a bandeira de mergulho hasteada no mastro que, sacudida ao sabor do vento bem sinalizava indubitavelmente a nossa presença no mar.
Já na segurança da barca e de regresso ao porto, comentámos o susto e a nossa correcta atitude de mergulharmos sem nos deixarmos atingir pelo pânico ou pelo navio, evitando assim que um estúpido acidente tivesse finalizado tragicamente uma manhã submersa de tão agradável visita ao REINO DE NEPTUNO.»

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