terça-feira, março 2

ENTRE DOIS MUNDOS


João Coito


Por que motivo sobreponho neste artigo o título de “entre dois mundos”?
Como reza o velho ditado popular, “recordar é viver…”.
Quem de entre nós ainda se poderá recordar desse antigo programa com o título de “entre dois mundos”? Programa difundido pela RTP-2, únicos canais a preto e branco naquela época. Quem se lembrará também do seu comentarista político e jornalista João Coito? Programa este que era semanalmente transmitido pela hora da janta, durante os governos de Salazar e Marcelo Caetano?! Já não serão muitos, aqueles que se recordam desse ínclito programa, especialmente os mais jovens, mas certamente ainda alguns poucos, dessa época se lembrarão dessa emissão e desse tempo.
Talvez agora, um pouco para recordar a história ou, especialmente a política, mas muito menos para criticar qualquer comentário desse insigne jornalista, que trago à nossa memória esse período passado e essa figura singular – aliás controversa - mas sim, exclusivamente, por outro motivo: mera análise ocasional que pretendo explanar de um modo que, eventualmente, poderá quem quiser, considerar polémico, subjectivo talvez.
Relembrando, “entre dois mundos”, como João Coito comentava, seriam os pequenos países que orbitavam entre as duas grandes potências militares e políticas daquele tempo.
Recordando fragmentos da História: Portugal com as suas colónias ultramarinas em guerra, - Angola, Moçambique e Guiné - flutuava no fio da navalha desde 1962, entre os interesses das duas grandes e poderosas nações do mundo, em plena guerra fria, a União Soviética e os Estados Unidos da América, respectivamente com os dois blocos militares, do Pacto de Varsóvia e da Nato, Tratado do Atlântico Norte, assinado a 4 de Abril de 1949 do qual Portugal faz parte como membro fundador.
Depois de a Índia conquistar a sua independência do Reino Unido em 1947, houve uma grande pressão para que Portugal e a França cedessem os seus territórios indianos. A recusa de Salazar em negociar levou em 1954 à perda das áreas de Dadrá e Nagar-Aveli, posteriormente em 1961 os territórios portugueses na Índia, Goa, Damão, Diu, foram também invadidos pela União Indiana e anexados ao país. Macau era uma Região Administrativa Especial de Portugal na República Popular da China até à madrugada do dia 20 de Dezembro de 1999.
História à parte, ainda hoje se comenta, em certos círculos notórios, isentos, que António de Oliveira Salazar, com direito a estatuaria, teria sido até aos nossos dias, ou para sempre, uma grande figura na história de Portugal, sem controvérsia, se em 1945, no término da 2ª guerra mundial tivesse autorizado democraticamente eleições livres e, obviamente, sem cercear Humberto Delgado em 1958. Salazar, de facto, conseguiu, até àquela data, com especial argúcia, negociar durante o conflito com os proeminentes políticos dos mais poderosos países do mundo. Não foi certamente tarefa fácil obter a neutralidade e manter o pequeno rectângulo da Lusitânia com os seus territórios insulares e ultramarinos, fora dos interesses destes senhores da guerra: Hitler “Der Fuhrer”; Churchill; Roosevelt; Estaline; Mussolini “Il Duce” e Franco “El Caudillo”.
 
O conflito, para Salazar, desenhava-se assim: Hitler porque tinha em mente a invasão da Rússia – Operação Barbarossa, iniciada a 22/06/41 – na reunião de Hendaye, a 23/10/40, que envolveu os consensos de Ribentrop, Mussolini, Petain e Laval, não autorizou que Franco anexasse Portugal à Espanha; Churchill e Roosevelt queriam de Salazar a Madeira e os Açores para, a partir daí, defenderem o Atlântico Norte dos ataques dos submarinos alemães comandados pelo almirante Donitz; a Inglaterra estava em grandes dificuldades e só o insistente fornecimento Americano, por mar, evitou a capitulação. Estaline depois da grande depuração interna, lutava com os aliados contra o poder nazi, mas já delineava em segredo, a sua política expansionista na Europa ocidental; Mussolini combatia com o eixo (Alemanha, Itália e Japão - Pacto Tripartite, assinado em Berlim em 27/09/1940) e tentava, em vão, expandir-se em África invadindo a Etiópia (1936/1941).
Sabe-se hoje que Hitler antes de invadir a Rússia, planeava controlar o Mediterrâneo, invadindo Gibraltar, (território Inglês desde 1713) pelos elaborados planos denominados "Operação Félix" e com a aderência de Franco, com os planos "Operação Isabela", às “potências do eixo” pretendia controlar o Norte do Atlântico, desde Cabo Verde à Madeira, tomando Portugal. Era essa a “sopa” que Salazar tinha que digerir com as devidas cautelas. Embora aparentemente ou não, ao lado do Eixo, nunca descurou o seu valor estratégico, o Atlântico e só aderiu inequivocamente aos aliados na véspera da invasão da Normandia - Operação Overlord, (6 de Junho a 22 de Agosto de 1944). A base na Ilha Terceira dos Açores foi criada em 1941 por ocasião da Segunda Guerra Mundial. Na altura havia uma ameaça de eventual ocupação dos Açores por forças aliadas ou alemãs, violando a neutralidade portuguesa. Para dissuadir as tentativas de ocupação, o Governo de Portugal enviou fortes contingentes militares para as ilhas, onde se incluíam unidades da Aeronáutica Militar do Exército Português que se instalaram em várias bases no arquipélago. Em 1943 contudo o Governo Britânico solicitou ao Governo Português, ao abrigo do Tratado de Aliança Luso-Britânico, o uso da Base das Lajes pela Real Força Aérea Britânica (Royal Air Force) o que foi concedido. Ainda antes do fim da 2ª Guerra Mundial, a base começou também a ser utilizada pela Força Aérea dos Estados Unidos (USAF) que ainda lá se mantém instalada. Salazar estabeleceu um acordo secreto com os Estados Unidos aquando da cedência da Base das Lajes em troca da devolução de Timor, território Português que havia sido ocupado pelo Japão a 19/02/42.  
Era, também, por esse prisma que, no seu tempo, em pleno período da guerra fria (1945/1991), João Coito comentava Portugal, passado e presente, “entre dois mundos”, USA e URSS.
Salazar, depois do conflito, numa atitude autoritariamente passiva, não aderiu imediatamente ao plano Marshall apresentado em 1947 pelo general Americano George Catlett Marshall. Só em 1948, o governo português decidiria modestamente aderir ao Plano como membro fundador da Organização Europeia de Cooperação Económica.
Salazar desenvolveu a sua política isolacionista, corporativa, (cópia do regime fascista de Mussolini) “orgulhosamente sós”, e imporia assim a sua ditadura. Com o apoio de uma polícia de repressão política, implacável, (PIDE – Polícia Internacional e de Defesa do Estado, DGS, depois, no tempo de Marcelo Caetano) que inevitável e abruptamente se findou aquando da revolução dos cravos iniciada na madrugada de 25 de Abril de 1974, com as canções e Depois do Adeus de Paulo de Carvalho e Grândola Vila Morena de Zeca Afonso que definitivamente, mudariam Portugal.
Sob o desígnio, Deus, «Pátria, Família: a Trilogia da Educação Nacional», Salazar conseguiu manter-se durante 40 anos no poder (1930/1970), com um partido único denominado União Nacional, ou Estado Novo na segunda República.
Esta é uma pequena resenha dos factos históricos recentes que dominaram o mundo, (1939/1974), conturbado, vilipendiado e agitado por ditadores e ideologias extremistas.
Os tempos mudam?!... como escreveu o poeta Brasileiro em Portugal: “não há machado que corte a raiz ao pensamento, não há corda para o vento”...
Mudarão as vontades como mudam os tempos?!...
Os ditadores continuam a proliferar e surgem do nada à sombra de artimanhas, promessas e esperanças adiadas!?...
Por isso, resta interrogar... as pessoas mudarão, assim como os tempos, independentemente da evolução tecnológica, ou continuarão a ser iguais em toda a história da humanidade, nos seus comportamentos, ansiedades, fobias e necessidades?!... Se assim for o homem moderno é, biologicamente, igual ao homem de Cro-Magnon que viveu nos primórdios da civilização.
Na história, a humanidade com as suas lutas de classes, traçou vínculos sociais inalteráveis: temporária e ciclicamente as maiorias dos oprimidos vence as minorias dos opressores.
Os ditadores surgem e extinguem-se por acaso ou necessidade?!...
Em cada um de nós parece continuar a existir, em estado latente, um ditador em potência que emerge ocasionalmente, mesmo nas mais singelas situações e, quando mais, na tentação da manutenção do poder. Vil tentação!
Algo a história nos ensinou: Ditadores e ditaduras caem inevitavelmente por força da evolução temporal - força de uma maioria subjugada.
A democracia, sem ser novidade, é, porém, numa nova perspectiva, sem invocar o novo conceito da ditadura da democracia ou manipulação das massas, a forma política, mais coerente que o homem encontrou até hoje para se projectar e poder viver em paz.
A democracia só poderá existir entre aqueles que se respeitem mutuamente, numa rotatividade política de coexistência pacífica; sem lugar para quem individual ou colectivamente, veste a pele do cordeiro e, sub-repticiamente, compra e subverte consciências e, subjugando-as à ameaça de "economias domésticas", manipula-as a seu belo prazer na ânsia gananciosa da obtenção do poder.
Quem se roga insubstituível e pretende manter o poder sem atender às regras básicas da democracia, certamente não é democrático mas só pretende defender os seus interesses e, colectivamente, os ganhos de uma minoria corrupta, subvertida. São esses agora e serão sempre os dois mundos “entre dois mundos”. O mundo dos muito ricos, minoria de poderosos, detentores da quase totalidade dos bens terrenos e o dos outros... aqueles que sem poder económico e político lutam às vezes pela sobrevivência e quando muito, também pela liberdade, na esperança de poderem usufruir de uma melhor vida, vulgarmente chamado, em bom português, de “um lugar ao sol”.
João Coito, naquele tempo, não podia pela força das circunstâncias vigentes ou, também, por ideologia política, comentar esses outros “dois mundos”.
Voltando ao passado: E aqueles que um dia lutaram perigosamente contra o poder instituído e agora estão nele, disfarçadamente qual lobos da montanha que desceram ao povoado; dizem-se democratas e praticam o contrário?!... Parece ter esquecido o passado e a luta pelo povo, traem arrogantemente as suas consciências. Daqueles que lhes confiaram o voto, rapidamente esqueceram as promessas de eleição. Tal qual “urubus” - aves de rapina necrófagas - que a grandes distancias ao cheiro da carne podre sobrevoam a festança, assim eles, cegos pela cobiça deambulam (sobrevoam a plebe), não pela luta da democracia mas apenas pela mera aquisição do poder, para encherem o papo à custa da vida alheia.
Cobrar impostos é fácil, governar é que é difícil.
Quanto difícil é deter o poder e saber ser justo, complacente, humano. Será muito difícil? Talvez seja! Mas terá havido na humanidade quem o soubesse fazer, mesmo com poder totalitário ser magnânimo, ou será apenas simples retórica do ensino da história que é bem recheada de lendas que nos inflamam o imaginário com gente que viveu desde a antiguidade, que, diga-se, convirá não esquecer. De qualquer forma supõe-se, pontualmente, que poderá ter existido alguém que com poder totalitário, terá possuído grandeza na alma ou o poder de perdoar. Embora a excepção não faça a regra, talvez as pessoas não tenham mudado muito, considerando uma cadeia evolutiva, biológica, mas que na sua natureza ainda imutável surjam, em todos os tempos, pessoas essencialmente excepcionais.
Recapitulando Portugal: Passaram mais de 30 anos da revolução dos cravos, lutámos e vivemos sempre na esperança “adiada” de ver a nossa sociedade progredir suavemente sem atropelos. Sentimos hoje um inevitável amargo de boca quando nos apercebemos que pouco mudou em termos eficazes globais: na educação que é a face basal e a esperança inequívoca de um País, não se viu nada de novo; na justiça sentimos ocasionalmente a martelada injusta das decisões disparatadas, inequívocas dos juízes, cegos pelos códigos e incapazes de reflectir em termos sociais e humanos; na saúde morre-se a caminho de um hospício ou fatalmente à espera que nos dêem trato numa reles consulta. Para só falarmos das três bases fundamentais de uma sociedade civilizada, democrática, e sem procurar mais apoquentações ficamos só pela educação, saúde e justiça. Vamos ter que percorrer mais gerações, na esperança que daqui a trinta anos estejam esses vindouros preparados para o futuro que nos parece, cada dia mais periclitante.
Que cómoda ironia: D. Sebastião foi o culpado, não esqueçamos.
Alguém um dia escreveu:
“Quereis verdadeiramente conhecer uma personalidade?!... Estudai-a, escutai-a e observai-a nas suas relações com aqueles que lhe obedecem! “
“... O ser humano é um animal essencialmente ambicioso, jamais resistirá à tentação do poder... “
Post scriptum: Este artigo foi escrito ainda em vida do citado jornalista, mas foi agora recomposto “post mortem” em sua memória.
João Coito faleceu no dia 9 de Outubro de 2007, com 80 anos de idade.
A referida emissão televisiva “ENTRE DOIS MUNDOS” exerceu, no passado da minha juventude, então com cerca de 16 anos, uma atracção inesquecível.
Comentário retirado da Net:
“O último chefe de redacção do Diário de Notícias do regime anterior foi João Coito, um jornalista de direita, que viria a ressurgir mais tarde como director de O Dia e, muitos anos depois, como colunista do semanário O Diabo.
Mas, nos tempos do DN, ele era, como reconhecem vários trabalhadores da época, "um homem muito querido dos pecês". O militante António Adão, um implacável do temível 3.º turno dos tipógrafos, confessa-nos, simplesmente "Nós adorávamo-lo!"
E porque derretia ele o coração destes duros?
"Era uma pessoa extraordinária, que falava connosco e que nunca assumia atitudes rígidas. O João Coito era muito afável", reconhece.
Ainda hoje se fala do episódio anterior à Revolução dos Cravos, quando estes mesmos tipógrafos decidiram fazer uma greve de braços caídos, e foi precisamente João Coito, como chefe de redacção, "a correr com os PIDES".
Ele próprio chegou a ir à António Maria Cardoso para libertar jornalistas do DN. Diz-se até, como afiança um socialista insuspeito, que chegou a interceder pela libertação de Mário Ventura Henriques.”


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