sábado, março 13

BOCAGE E O INFORTÚNIO DA SUA VIDA


MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE

Nasceu em Setúbal a 15 de Setembro de 1765.
Poeta português entre os maiores.
Brigão, brejeiro é ainda hoje mal conhecido. Com efeito, a sua imagem estereotipada, muito difundida entre o vulgo, continua a ser de um mero vadio sem vergonha, de réplica imediata, cáustica e grosseira. Em 1779, Bocage é cadete no 7º de Infantaria de Setúbal. Em 14 de Abril de 1786, embarcou como oficial de marinha para a Índia, na nau “Nossa Senhora da Vida, Santo António e Madalena”, que chegou ao Rio de Janeiro em finais de Junho. Na cidade, viveu na actual Rua Teófilo Otoni, e diz o "Dicionário de Curiosidades do Rio de Janeiro" de A. Campos - Da Costa e Silva, pg 48, que "gostou tanto da cidade que, pretendendo permanecer definitivamente, dedicou ao vice-rei algumas poesias-canção cheias de bajulações, visando atingir seus objectivos. Sendo porém o vice-rei avesso a elogios, e admoestado com algumas rimas de baixo calão, que originaram a famosa frase: "quem tem c... tem medo, e eu também posso errar", fê-lo prosseguir viagem para as Índias".
Admirava Camões e sentia-se irmanado com ele nas desventuras amorosas e nas viagens pelo Oriente, tendo estado em Damão e Macau. Pré-romântico, foi amigo da Duquesa de Alorna e de Filinto Elísio, todos da Nova Arcádia. Em 1790, estava de regresso a Lisboa, que era onde se sentia bem, pelas bandas do Café Nicola ou pelo “Agulheiro dos Sábios” no Botequim das Parras, ao Rossio.
Temos que reviver Bocage e a sua época no reinado de D. Maria I: o resquício dos ódios contra o Marquês de Pombal, ainda era muito aceso; os conflitos com a Espanha no Brasil; o conflito entre a Inglaterra e a América pela independência; e a Revolução Francesa traziam para Portugal lufadas de ideais novos.
A última metade do Sec. XVIII foi revolucionária. O iluminismo Pombalino havia carreado uma mudança radical em termos de pensamento. O despotismo iluminado provocaria a nivelação de todas as classes sociais perante o poder do rei. Os esbirros de Pina Manique, polícia secreta, popularmente conhecidos pelos “as moscas” tentavam em vão impedir essas mudanças.
Na sua incondicional veneração por Camões, Bocage comparando com os dele os seus próprios infortúnios, escrevia:

Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu quando os cotejo!
Igual causa nos fez perdendo o Tejo
Arrostar com sacrílego gigante:

Como tu, junto ao Ganges sussurrante
Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante:
Ludíbrio, como tu, da sorte dura,
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura:
Modelo meu tu és... Mas, ó tristeza!...
Se te imito nos transes da ventura,
Não te imito nos dons da natureza.
Bocage, para além da poesia lírica, compôs poemas de carácter erótico, burlesco e satírico, contemplando pessoas do regime, tipos sociais e o clero, facto que não agradou obviamente ao poder. Poemas como "Liberdade, onde estás? Quem te demora?", "Liberdade querida e suspirada", "Pavorosa Ilusão da Eternidade" ou um outro em que faz explicitamente o louvor de Napoleão, paradigma da revolução francesa. As críticas do Papa conduziram-no à prisão, por crime de lesa-majestade. No Limoeiro, vivendo em condições infra-humanas, moveu as suas influências e beneficiou da amizade do ministro José de Seabra da Silva e da sua popularidade. Três meses mais tarde, era entregue à Inquisição, já sem o poder discricionário que outrora tivera, sob a acusação de impiedade. Dos cárceres da Inquisição passou para o Mosteiro de S. Bento, como comprova o respectivo diário, referente a 1798 no qual se lê assim:
"A 17 do presente mês de Fevereiro foi mandado para este Mosteiro pelo Tribunal do Santo Ofício o célebre poeta Manuel Maria Barbosa du Bocage, bem conhecido nesta corte pelas suas poesias e não menos pela sua instrução. Tinha sido preso pela Intendência, e ele reclamara para o Santo Ofício, onde esteve até ser mandado para este Mosteiro." No mesmo livro, no capítulo relativo ao mês de Março, é mencionado o facto de o Abade do Mosteiro ter recebido uma carta do Tribunal do Santo Ofício, dando por finda a reclusão do poeta, por determinação de sua Majestade, e exigindo a sua transferência para o Hospício das Necessidades. Tudo leva a crer que o escritor fora tratado com excessiva brandura no Mosteiro de S. Bento, incompatível com a "reeducação" que Pina Manique animosamente prescrevera. A 22 de Março de 1798, Bocage deu entrada no Hospício das Necessidades, em regime de vigilância apertada, sem poder, segundo ofício de Pina Manique, "sair fora sem nova ordem, nem comunicar com pessoa alguma de fora, à excepção dos Religiosos Conventuais, andando em liberdade no mesmo Hospício, sem que venha abaixo às Portarias e à mesma Igreja, e nas horas de recreação poderá ir à Cerca na companhia dos Religiosos e Conventuais e assistir no Coro a todos os ofícios". Acrescentava ainda o ditador: “O Príncipe nosso Senhor espera que com estas correcções que tem sofrido tornará em si e aos seus deveres, aproveitando os seus distintos talentos com os quais sirva a Deus nosso Senhor, a S. Majestade e ao Estado, e útil a si, dando consolação aos seus verdadeiros amigos e parentes, que o vejam entrar em si verdadeiramente, abandonando todos os vícios e prostituições em que vivia escandalosamente."
Pouco durou esta reclusão. Mais uma vez o seu carisma e o seu reconhecido talento prevaleceram. Porém, a saga de Bocage com a Inquisição reacendeu-se em 1802, tendo sido aberto novo processo por denúncia feita por Maria Theodora Severiana Lobo que o acusava de pertencer à Maçonaria. Por falta de provas e provavelmente devido à saúde fragilizada do escritor, o referido processo, que pode ser consultado na Torre do Tombo, foi arquivado. Um último aspecto é digno de menção: a censura perseguiu Bocage durante toda a sua vida. Muitos versos foram cortados, outros ostensivamente alterados, houve poemas que só postumamente viram a luz do dia. Compreende-se plenamente o seu anseio desesperado: "Liberdade, onde estás? Quem te demora?"
Ao aproximar-se a hora da morte, alguém escreveu por ele: (...) Rasga meus versos. Crê na eternidade.
Assim se completa o poema:
Já Bocage não sou!... À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.
Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa!... Tivera algum merecimento,
Se um raio da razão seguisse, pura!
Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:
Outro Aretino fui... A santidade
Manchei!... Oh! Se me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!
Faleceu a 21 de Dezembro de 1805, com 40 anos, na travessa de André Valente, em Lisboa e foi sepultado no cemitério da Igreja das Mercês.
Na sua estátua, no Largo do Bocage, em Setúbal vê-se pendente um manto. Conta-se que lhe deu um admirador, para se proteger do frio: Dizia ele, que não mandava fazer o fato por estar à espera da última moda.
Bocage determinou o neoclássico para o romantismo. Cantava as suas poesias eróticas em linguagem vernácula; eram as canções brasileiras, cantadas à guitarra ou à viola, desde as reuniões de família, até às orgias dos botequins. Todos os poetas davam à porfia letras para estas árias, e Manuel Maria, como “Bocage” que era ordinariamente conhecido, não foi dos menos pródigos. Demais, o poeta, que sempre sonhava parecer-se no seu destino com o de Camões, do qual invejava a imorredoura glória, comparava a sua mocidade livre com a que ele tivera, e pensava porventura que também Camões na corte compunha e recitava versos, requestava donzelas, e cantava a Natércia. Camões tinha ido ao Oriente, Bocage foi também.
No ano de 2005, em Setúbal, comemoram-se 200 anos sobre a morte do poeta setubalense. A tertúlia "Eis Bocage... Conversas de Botequim". Um taberneiro de outros tempos vestido a rigor, poesia, música e petiscos regionais, já fazem parte das comemorações bocagianas, anuais, em Setúbal".
Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;

Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura,
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno;
Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades;
Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou mais pachorrento.


Um mercador da Rua dos Fanqueiros deu a Bocage um corte de briche fino, para ele mandar fazer um fato, em paga de uma bela ode que o poeta dedicara aos anos de sua filha. Bocage, que não tinha dinheiro para o feitio da roupa, embrulhou-se na fazenda como se fora um xaile-manta e foi, passados oito dias, agradecer a dádiva ao mercador.
- Então, Bocage – perguntou-lhe o lojista muito admirado –, não mandaste fazer o fato?
- Hei-de mandar, hei-de mandar – respondeu o poeta –, mas ando a ver primeiro em que param as modas…
COMPOSIÇÃO DE JOSÉ DOURADINHA

http://josmaelbardourblogspotcom.blogspot.com/2010/02/inquisicao-em-portugal.html

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